Quem define a ciência?

Combustível para debates acalorados, a definição de “ciência”, nos últimos anos, ganhou componentes ainda mais voláteis. Vê-se, atualmente uma extrema polarização, no que tange a compreensão do mundo: de um lado, pessoas absolutamente alheias ao conhecimento produzido pelos estudos científicos; do outro, cientistas, principalmente alguns “divulgadores de conhecimento”, ensimesmados em seus métodos investigativos, e em sua busca por validação egóica.

 

Tem-se debatido muito o que é ou não ciência. O termo “pseudociência” é usado como uma explicação tampão para todo e qualquer saber que não se adequa (e, muitas vezes, invalida) a narrativa dos que se julgam “detentores da verdade absoluta”. Se há aproximação da realidade mais contraditória ao pensamento científico, desconheço.

 

Dias atrás, uma notória “divulgadora de conteúdo científico” ateou mais gasolina ao já inflamado debate. Com o intuito de divulgar uma obra de coautoria sua, a especialista afirma que saberes como Acupuntura, Homeopatia e até mesmo psicanálise, no máximo produzem efeitos positivos graças ao efeito placebo, ou seja, quando há um efeito terapêutico por sugestão psicológica. 

 

Antes de nos aprofundarmos  nesse assunto em particular, que tem rebatimentos inclusive nas Práticas Integrativas ofertadas pelo SUS, vamos retomar o que define ciência. De acordo com Creswell (1990), ciência é todo o método de investigação da realidade, com o intuito de se obter conhecimento. E, ainda de acordo com o autor, para lograr êxito nisso, há que se valer do método científico, que nada mais é do que a lógica aplicada à busca por conhecimento. Aqui, abre-se espaço para uma ampla

 seara de possibilidades, haja visto a quantidade de métodos investigativos: indutivo, fenomenológico, dialético, indutivo-hipotético, entre outros. Portanto, desde que se siga um método lógico-investigativo, e que os resultados dessa investigação levem a uma conclusão (afirmativa ou negativa), trata-se de ciência. Popper vai além, quando critica o método indutivo, ao apontar a necessidade de o observador ter cuidado, ao buscar validação para sua hipótese, com o falseamento; ou seja, há que se ter cuidado para que não se busque apenas validação de que a hipótese está correta (falseada), mas sim, de que está errada.


E isso (o método científico) de longe é propriedade intelectual oriunda do eixo Greco-europeu. Muito se debate, na atualidade, sobre a necessidade de ir além do pensamento colonial. Ainda abordamos a realidade a partir de um referencial europeu, colonialista. Ciência, conhecimento e método científico são aplicados por inúmeras tradições, há milênios. A Medicina Tradicional Chinesa (MTC), por exemplo, tem seu alicerce de saber no conhecimento sistematizado por mestres e mestras taoístas, que se debruçaram sobre o entendimento dos fenômenos naturais desde prístinas eras. E esse saber, além de sistematizado, foi transmitido através de linhagens ininterruptas, com métodos a serem seguidos, e resultados a serem alcançados, em determinadas fases, obedecendo determinados princípios. Ciência e método científico, pois.

Na verdade, todas as culturas ancestrais (negras, orientais, americanas) sempre se apoiaram no método científico, inclusive como necessidade de sobrevivência: ao passarmos da era de “caçadores-coletores”, tornamo-nos agricultores. A agricultura é um método científico por excelência: há uma hipótese (plantar e cuidar do que foi plantado pode produzir alimentos e sustentar um grupo de pessoas), o teste empírico (planta-se e cuida-se, logo, colhe-se) e o resultado (plantar leva a colher). 


Ou seja, o conhecimento científico sempre foi produto do empirismo humano, em sua busca por compreensão da realidade. Os objetos de estudo e a forma de se aproximar do fenômeno a ser estudado variam mas, não obstante, não deixam de ser ciência.


Husserl, em seu método fenomenológico, afirma que é necessário ao investigador suspender seus conceitos pré-determinados ao se observar um fenômeno, sob o risco de contaminar a observação com suas próprias convicções (conceito chamado epochè). Quando um pesquisador se propõe a fazer críticas a áreas de conhecimento não análogos ao seu, incorre em falácia argumentativa. Erro crasso em qualquer estudo científico, pois se a lógica do observador já está enviesada, suas observações acerca daquilo que ela se propõe a estudar também estará. Essa suposta revisão sistemática da literatura sobre aquilo que se convencionou chamar de “pseudociência” é tão pobremente consubstanciada que ela associa os efeitos terapêuticos da Acupuntura e Homeopatia ao efeito placebo. Outro viés: as referidas especialidades contam com estudos em meta análise e revisão por pares muito interessantes, no campo da Zoologia e Medicina Veterinária. Passou-lhe pelo crivo o fato de animais não estarem sujeitos ao efeito placebo, haja visto não terem noção de “si mesmo” para serem sugestionados. 


A questão, infelizmente, se espraia para além do debate técnico. Compromete e põe em risco a adequada manutenção e adesão à PNPICSUS (Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS, que oferece atendimento em Acupuntura, Homeopatia, Reiki, entre outros), haja visto que, enquanto formadores de opinião, os “divulgadores de conteúdo científico” podem induzir os usuários a não se manterem aderidos a tratamentos de comprovada eficácia, mínima invasibilidade e que contribuem sobremaneira para o protagonismo do indivíduo no cuidado com sua saúde, inculcando-lhes a falsa noção de que não se trata de métodos terapêuticos válidos do ponto de vista científico. O modelo organicista medicalocêntrico vai na contramão das Práticas Integrativas, contribuindo para a manutenção de uma mentalidade cada vez mais apartada do autocuidado.


Em tempos de fetichização do conhecimento, de uma relação narcisista com a vida, torna-se necessário o debate e o questionamento de ambos os lados: há que se manter o rigor científico, mas esse rigor não pode jamais estar contaminado por qualquer viés. Afinal, nada mais anticientífico que pretender ser o detentor de verdades absolutas.


Encerro essa reflexão com as palavras de um príncipe, que há 2.500 anos atrás abandonou o conforto do palácio onde vivia, para investigar a realidade:


“Não creiam em minhas palavras, apenas porque sou eu quem as diz.

Testem-nas em suas vidas, assim como um hábil ourives testa o ouro.

Caso o que eu digo não seja verdade, descarte.” 

(Sidarta Gautama, o Buda).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

 

 

Evaluating Meta ethnography: systematic analysis and synthesis of qualitative research. Campbell, P. et al. University of Exeter Press, 2012.

Creswell, J. Projeto de Pesquisa. ArtMed, 2010.

Science and the Liberal Mind: The methodological recommendations of Karl Popper. Lefreve, S. Political Theory, Vol 2, No.1. Sage Publications, 1974.

Withaker, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Editora Fiocruz, 2020.

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