Agricultura e saúde mental: o que, de fato, estamos cultivando?

Muitas vezes, ao refletir sobre as condições de vida na cidade – com trânsito intenso, cheia de indústrias, automóveis, vida agitada divida entre família, trabalho e o escasso lazer – o sonho da vida no campo começa a tomar forma e ser objeto de desejo de muitas pessoas.  


No imaginário social, pertencer ao campo, cultivar, estar longe da cidade pode parecer física e mentalmente mais atraente. Entretanto, esse sossego em geral não é característica marcante na vida dos agricultores, pois viver NO campo é diferente de viver DO campo, já que a saúde mental de quem depende da agricultura convencional para sobreviver está cada vez mais ameaçada.  


Ao contrário do que possa parecer, os agricultores estão entre os grupos de maior vulnerabilidade devido a um misto de aspectos ambientais, biológicos, psicológicos e sociais que não podem ser classificados de acordo com o maior ou menor impacto, tamanha a complexidade.  

Ao longo da história, a saúde mental de trabalhadores rurais sempre foi comprometida. Atualmente, destacam-se entre as causas, as mudanças climáticas com secas, incêndios e inundações avassaladoras; a imposição da monocultura; a exposição à violência e assédio no ambiente rural; a instabilidade de emprego; a baixa renda; os longos períodos de trabalho; as doenças crônicas; o isolamento geográfico que distancia o agricultor dos serviços básicos como educação e saúde e, o contato intenso com agrotóxicos.  


Uso intensivo de agrotóxicos 


Existe relação entre a atividade laboral e transtornos mentais que esta pode causar. Dados internacionais, evidenciam taxas altas de suicídio em agricultores em relação a outras profissões e reforçam que esse é um fato global. 


Tal exposição pode ser intensificada em países em desenvolvimento com forte atuação na agricultura. A baixa escolarização dos trabalhadores do setor, pouco conhecimento sobre agroquímicos, pouca leitura de rótulos e normas técnicas, armazenamento e descarte incorreto de agrotóxicos e baixa aderência ou inadequado uso de equipamentos de proteção individual colocam em risco não só a saúde física do agricultor como também a saúde mental. Nesse caso, as duas principais categorias de diagnóstico de transtornos de saúde mental prevalentes em todo o mundo são transtornos de humor, como depressão e transtornos de ansiedade.  


Segundo o Instituto Nacional de Câncer, agrotóxicos são produtos químicos sintéticos usados para matar insetos, larvas, fungos, carrapatos sob a justificativa de controlar as doenças provocadas por esses vetores e de regular o crescimento da vegetação, tanto no ambiente rural quanto urbano (INCA, 2019). 


O uso intensivo de agrotóxicos pode levar tanto à exposição em altas doses a curto prazo, gerando casos de intoxicação aguda ou envenenamento e também à exposição lenta e em doses baixas, ou seja, a exposição crônica à agrotóxicos.  


A complexidade das causas para transtornos mentais em agricultores leva a estudos com diferentes designs e dificuldade de comparação entre eles. Ainda assim, novos trabalhos e revisões são publicadas e sugerem relação entre exposição a agroquímicos e saúde mental precária nesse setor de produção (KHAN et al., 2019). 


Em um levantamento de estudos sobre a saúde mental de trabalhadores no setor agrícola, Khan e colaboradores (2019) observaram nos EUA associações fortes entre sofrimento psicológico como depressão e ansiedade e exposição a pesticidas tanto em doses altas como baixas. Outras pesquisas também têm revelado que mesmo após anos de um evento de envenenamento, sintomas de depressão podem ser observados em agricultores quando comparados aos não envenenados. 


Sobre a exposição a pequenas quantidades de agrotóxicos por um período prolongado a ANVISA (2018) destaca como sintomas: dificuldade para dormir, esquecimento, aborto, impotência, depressão, problemas respiratórios graves, alteração do funcionamento do fígado e dos rins, anormalidade da produção de hormônios da tireoide, dos ovários e da próstata, incapacidade de gerar filhos, malformação e problemas no desenvolvimento intelectual e físico das crianças. Estudos apontam grupos de agrotóxicos como prováveis e possíveis carcinogênicos. 

Como a saúde mental precária interfere no estado emocional, social e intelectual de um indivíduo, casos de alcoolismo, endividamento, violência, suicídio ocorrem em um ciclo que pode atravessar gerações de agricultores.  


O Brasil é conhecido pela liberação e consumo expressivo de agrotóxicos, inclusive de pesticidas à base de substâncias organofosforadas, considerados pela Organização Mundial da Saúde como um dos mais prejudiciais aos seres humanos. São substâncias químicas que produzem alterações endócrinas e no funcionamento neuroquímico, podendo desencadear transtornos mentais ou neurológicos que também podem evoluir para o suicídio. 


Assim, a morte de trabalhadores na agricultura por suicídio também é maior quando comparada a outras profissões. No Brasil, os dados não são tão recentes como gostaríamos e estão divulgados em diversos documentos e sites: A mortalidade por suicídio em trabalhadores da agropecuária foi estimada em 16,6 a cada 100.000 habitantes em 2007, passou para 18,6 em 2011 e 20,5 em 2015. 

Casos de envenenamentos tanto por agrotóxicos quanto pela nicotina presente no tabaco são frequentes entre fumicultores no sul do país. Nessa região, dados de 2020 mostram que a média de suicídios nessa classe de trabalhadores (11,3/100.000 habitantes) é mais que o dobro da média nacional (5,2/100.000 habitantes), (CRUZEIRO, 2023). 


A variedade de instrumentos e métodos de pesquisa, assim como os tamanhos amostrais empregados dificultam o estabelecimento de uma relação causal sólida e consistente entre exposição à agrotóxicos e saúde mental do trabalhador no setor da agricultura, apesar do alerta ser indispensável.  


A divulgação e discussão desses achados, o desenvolvimento de políticas públicas e aplicação de métodos para proteção e garantia da segurança ocupacional de trabalhadores do setor agrícola, assim como suporte a saúde física e mental são imprescindíveis.   


Estudiosos como Cruzeiro (2023) têm apontado para o emprego do sistema agroecológico no combate à epidemia de suicídio entre agricultores, levando em conta que tal sistema impacta positivamente nas relações de exploração sistêmica da natureza e da força de trabalho humano. O resgate de modos não-convencionais e técnicas de manejo históricas transmitidas entre gerações, somado a pesquisas científicas nas diversas áreas do saber, mostra-se eficiente não só na produção como na melhora da saúde mental do agricultor. 


Como de costume, reforçamos a importância de ações educativas processuais. A educação sobre o manuseio e uso seguro de agrotóxicos, bem como os efeitos nocivos da exposição a curto e longo prazo e mesmo em doses baixas pode reduzir a exposição no local de trabalho. Porém não adianta apenas informar o trabalhador quando a pressão pela produção, os desafios com o clima, controle de pestes e a necessidade financeira batem à porta. Tais ações devem ser integradas e dar suporte ao trabalhador nos diferentes aspectos da sua vida no campo. Estamos falando de políticas públicas. 


Do mesmo modo, devemos nos manter informados e atentos sobre nosso papel no incentivo a exploração de trabalhadores que vivem nessa situação de exposição a tais substâncias químicas. Sem esquecer, é claro, que os eventos de exposição aguda ou mesmo crônica com agricultores, se estendem mesmo que em menor escala até nós, consumidores desses alimentos.  


Qual é a qualidade do alimento e da água que chega até minha mesa? Quais são os riscos a que estou me expondo a longo prazo? Qual é o preço que o trabalhador rural paga pela minha subsistência? O que, de fato, estamos cultivando? 


São perguntas que motivam debates e pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento e que ainda não têm resposta exata. Ainda assim, devem ser tratadas com seriedade por pessoas que como nós sabem da responsabilidade e desafio que é VIVER BEM. 


Referências 


AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (Brasil). Monografias autorizadas. Brasília, DF: ANVISA, 2018.

 

CRUZEIRO, V. A Agroecologia como horizonte de combate à epidemia de suicídios entre agricultores. Revista Brasileira de Agroecologia, 2023, 18(5), p. 585-600. 


INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. Exposição no trabalho e no ambiente. Agrotóxico. Rio de Janeiro: INCA, 2019. 


KHAN, N.; KENNEDY, A.; COTTON, J.; BRUMBY, S. A pest to mental health? Exploring the link between exposure to agrichemicals in farmers and mental health. International journal of environmental research and public health, 2019, 16(8), 1327.  

 

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