Viver a vida com qualidade é apropriar-se do corpo, do eu, das sensações que iniciam na pele (maior órgão do corpo) e fluem para as sinapses neurais na síntese e degradação de neurotransmissores e na liberação de hormônios que nos retornam nos comportamentos de prazer, bom humor, relaxamento. As dopaminas nos dão a sensação de recompensa, um sono tranquilo e bom humor; as endorfinas são liberadas quando se realizam exercícios físicos; as serotoninas combatem a depressão e as oxitocinas são consideradas o hormônio do amor, pois ocorrem em contato com animais de estimação ou uma visita ao parque com seu filho bebê.3 É estar mais em contato com a natureza, andando descalços, pisando na terra, trocando, provocando e desencadeando, portanto, relações e reações eletro-físicas, eletromagnéticas. É olhar o pôr ou nascer do sol, é sentir o aroma dos lírios do campo, do pé de alecrim ou uma folha de manjericão. É ouvir o canto dos pássaros, as águas das cachoeiras e as ondas do mar numa manhã de domingo. É mastigar uma pitanga, uma manga e uma jaca e permitir que as papilas gustativas desempenhem sua função sem interferência do olhar. É olhar para dentro de si.
Muitas pessoas convivem com distúrbios de ansiedade, por tantos motivos e citarei apenas um dos motivos contemporâneos: vivem em sociedades urbanas barulhentas e com exigências desmedidas de produção e obtenção de bens de consumo. Somos em 11,5 milhões de brasileiros, e temos dados específicos que dentre eles, 5,8% da população apresenta quadros de depressão e 9,3% distúrbios de ansiedade.4
Poderia, com meu conhecimento e baseado em pesquisas científicas, citar e falar sobre diversas práticas corporais que produzem efeitos benéficos e que podem ser consideradas apoio terapêutico para o tratamento da ansiedade, como as técnicas de educação somática com exercícios de respiração ou de toque e tantas práticas consideradas holísticas e alternativas.
A literatura aponta os exercícios físicos como antidepressivos naturais e um excelente apoio ao tratamento da ansiedade. Como um exemplo, a prática de exercícios físicos do tipo aeróbico aumenta o BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro) o que implica num remodelamento plástico da área do hipocampo localizado no cérebro, reduzindo os comprometimentos da memória tão comuns com o envelhecimento. Os exercícios físicos provocam a liberação de hormônios e síntese de neurotransmissores responsáveis pelo bom humor, sensação de prazer, calma e bem-estar5, principalmente se forem realizados estrategicamente de forma lúdica.
Mas quis escrever umas linhas sobre corporeidade, sobre ser e estar no mundo, sobre manifestar-se a partir do corpo6. A corporeidade nos define, pois, a partir dos papéis que assumimos, de nossas posturas no mundo e nas relações, desencadeamos gestualidades. Tais gestualidades podem ser previsíveis ou não. Depende das vivências, das experiências, das rotinas que cada pessoa escolhe ter ao longo de sua existência.
Qual rotina escolheu? Se impregnar de natureza, de diferentes vivências, de práticas integrativas, de abraços, ou reproduzir atitudes e gestos que não lhe definem, mas definem tendências e padrões externos?
Convido você, leitor, a pausar por um instante, refletir estas perguntas.
Agora quero lhe perguntar: Você sabe o que é soma? E educação somática? Já ouviu falar em técnicas somáticas?
O soma pode ser entendido como o corpo tratado em primeira pessoa: o corpo sujeito, o próprio eu, o soma sujeito, o eu corporal.7 Perceba que o soma não se opõe à psique, mas há uma frequente dualização no imaginário de grande parte das pessoas, em especial, daqueles que dividem o corpo didaticamente em áreas de estudos e pesquisas científicas, tendendo a afunilar em partículas de estudos, às vezes em micropartículas não visíveis a olho nu.
A educação somática tem origem no termo soma, que apresenta o corpo como vívido, total, sistêmico-ambiental, experimentado de dentro, em potente integração com sua existência fenomenológica e biológica8. É um campo teórico-prático composto de diferentes métodos cujo eixo de atuação é o movimento do corpo como via de transformação de desequilíbrios mecânico, fisiológico, neurológico, cognitivo e/ou afetivo de uma pessoa.
Desse modo, considera a indissociabilidade entre linguagem, pensamentos, emoções e as atividades biológicas e neurais, fisiológicas e do movimento. Almeja desenvolver consciência da autorregulação do corpo e de um complexo holístico integrado.
Mas, onde encontrar uma educação somática?
Há clínicas fisioterápicas, hospitais, consultórios terapêuticos, empresas, centros comunitários, projetos de inclusão e cursos de teatro e de dança que desenvolvem práticas baseadas na educação somática viabilizadas para além do olhar o todo, por determinadas técnicas específicas.
Como exemplo, percebe-se atualmente, o enfoque somático nesta perspectiva, em alguns grupos de dança contemporânea, bem como em cursos de formação acadêmica em Dança. Dessa maneira, a abordagem somática apresenta-se como mais um instrumento de autoconhecimento para a dança. O que, sob meu olhar é um diferencial, já que as danças de modo geral costumam privilegiar o conceito motor, decorar movimentos e sua repetição.
Ressalto nestas linhas, a técnica de dança e de preparação do artista da cena de Klauss Vianna9 embasada na técnica somática. Desenvolve no bailarino e artistas da cena (teatro, música, performer), os sentidos que organizam o movimento buscando a sensação do movimento, colocando-os em estado de presença a partir da escuta do corpo. A técnica Klauss Vianna dilui as fronteiras entre dança e educação somática, é mais que um instrumento para a dança, é mais que um estar em relação ou em diálogo porque compreende o soma integrado e disponível para a cena. É um organizar-se neurologicamente para as habilidades específicas da dança. O objetivo da técnica de dança neste caso, não é um tratamento terapêutico, mas uma abordagem pedagógica que pode, também, auxiliar e desencadear processos de curas e amenizar os diferentes aspectos da ansiedade patológica.
Jussara Miller, pesquisadora da técnica Klauss Vianna e criadora de sua própria técnica de dança a partir da educação somática, acrescenta que os praticantes de dança neste formato descrito tendem a controlar e diminuir queixas de insônia, enxaquecas, dores musculoesqueléticas (que podem ser aspectos de ansiedade) em consequência da prática regular do aluno pesquisador dançante, pois recebe estímulos para a compreensão e conscientização de si. Nestas aulas o participante é motivado a perceber-se, a observar-se em ação desenvolvendo a percepção de si. Esta é a própria técnica: perceber-se, escutar o próprio corpo.
Tais artistas da dança citados trazem a noção de corpo próprio, corpo percebido, corpo vivido ou corpo sensível10.Estes termos explicam ainda melhor a técnica de dança Klauss Vianna baseada na educação somática e técnicas somáticas porque busca apoiar-se na personalidade, busca olhar para o humano em sua individualidade, em como cada um se manifesta no mundo, conduzindo o praticante a despertar para os cinco sentidos, para o sentido cinestésico que compreende a percepção do corpo no espaço e no tempo. Perceba que vai muito além do movimento pelo movimento, mas este está em relação, em confluência maior consigo, com o/s outro/s, com o/s objeto/s e situações circundantes em determinado tempo (que pode ser o presente, passado e futuro).
A dança neste sentido é uma prática corporal humanizadora, capaz de refinar o corpo sensível a partir de um olhar para dentro e para fora e que transpõe os limites da sala de aula para o cotidiano. É uma dança que acontece a partir da construção da percepção do caminho que o movimento realiza e é único, pois não somos iguais. Por isso é também denominado pesquisa do movimento. O praticante é um pesquisador, um cientista do seu movimento por submeter seu corpo a constantes laboratórios do movimento.
Retorno a questioná-lo, querido leitor: o que está escutando? Será que não escuta vozes demais? Escuta alguma voz ou as vozes tornaram-se barulhos, ruídos constantes?
No mundo contemporâneo escutar apenas uma voz já seria um ganho. Mas atenção, pois assim como na dança, corre-se o risco da “cristalização” do movimento, dos padrões unificados e absolutos como única possibilidade11, os modelos de dança que dificultam o desenvolvimento de “escuta do corpo” e, conforme Klauss Vianna, ao padronizar um modelo apenas baseado em uma técnica específica pode provocar couraças e impedir o reconhecimento do próprio eu.
Quem é você?
Se você é como eu e tem dificuldade em ser seu corpo é porque nos inculcaram que temos tal corpo. Construíram um corpo, nos ensinaram que temos um corpo modelo feito de linguagens, símbolos e imagem a partir do qual construímos a nossa imagem corporal12. E qual é o modelo a seguir? Qual é a sua corporeidade, ou seria melhor dizer, as suas corporeidades, pois para cada papel que desempenhamos na sociedade nos é exigido uma corporeidade: uma corporeidade para a missa, outro para a livraria, outro para o passeio no baile, outro para o churrasco em família, outro para a academia catedrática dos saberes conceituais, outro para a maternidade/paternidade e tantos outros papéis que desempenhamos.
Tratar o mal da ansiedade começa por pausar, respirar e ouvir o seu corpo. A partir de então, criar hábitos de realização de práticas corporais para melhor percebê-lo, criar consciência de si. Tais práticas corporais podem apoiar seu tratamento terapêutico contra a ansiedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GIL, J. Movimento total – O corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.
GONÇALVES, M. A. S. Sentir, pensar, agir: corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1994.
Instituto Internacional de Saúde. Sinalizadores de remodelamento tecidual no cérebro.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Trad. Reginaldo di Piero. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971.
MILLER, J. Qual é o corpo que dança? Dança e educação somática para adultos e crianças. São Paulo: Summus, 2012.
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VIANNA, K. A dança. São Paulo: Summus, 2005.
SOUZA de, N. R. Ludicidade do adulto: como recursos lúdicos podem ser utilizados para o auxílio nos processos de enfrentamento em casos de transtorno de ansiedade e depressão.
TUBINO, M.J.G. A qualidade de vida e a sua complexidade. In: MOREIRA, W.W.; SIMOES, R. (Orgs.). Esporte como fator de qualidade devida. Piracicaba: Unimep, 2000.