“O que é a doença” parece uma pergunta simples, mas apenas parece. A doença pode ser considerada desordem ou disfunção, mas para entendermos a desordem ou a disfunção precisamos entender qual seria a ordem e qual seria a função. Normalmente, se apreendem as evidências desse conjunto de elementos a partir do que, na área da saúde, chamamos sinais e sintomas. Sinais são os aspectos observados pelo profissional da saúde e sintomas são as queixas dos pacientes. Chamamos sintomatologia o conjunto de sinais e sintomas. Fácil, né? Nem tanto. Dor de cabeça é um sinal ou um sintoma? Como é o paciente quem relata, trata-se de um sintoma; inchaço e vermelhidão são sinais, uma vez que podem ser vistos por outras pessoas que não o próprio paciente. Sintomas são sentidos, portanto, considera-se de caráter subjetivo. Os sinais são observados, portanto, teriam caráter objetivo. O que um profissional da saúde precisa fazer é juntar sinais (objetivos) e sintomas (subjetivos) em um conjunto de informações que precisa ter objetividade.
Para darmos significado à sintomatologia (conjunto de sinais e sintomas), precisamos de referenciais que permitam ao profissional da saúde discernir o que seriam sinais e sintomas que indicam problemas e gravidades daqueles sinais e sintomas que não indicam gravidade ou que indicam pouca ou nenhuma preocupação. As Ciências da Saúde chamam Semiologia esse conjunto de conhecimentos prévios que permite interpretar e dar significado aos sinais e sintomas.
Mas quando o paciente se consulta, o que se apresenta é basicamente uma “fotografia” do estado do paciente, ou seja, um momento específico e pontual. Inchaço e vermelhidão, por exemplo, são evidências de inflamação, mas há quanto tempo esses sinais estão visíveis? O paciente caiu? Bateu? Ou não aconteceu nada? Como esses sinais apareceram? Quando? Cada uma dessas respostas leva para um raciocínio diferente: é importante tentar detectar as causas – elas melhoram a caracterização dos sinais e dos sintomas. Ainda assim, esse raciocínio está vinculado à dualidade entre função-disfunção e entre ordem-desordem. Nosso pensamento (e, portanto, nosso raciocínio) é muito binário. Haveria algo entre a função e a disfunção? Entre a ordem e a desordem?
Um fisiologista famoso do século XIX, Claude Bernard, é bastante lembrado nos livros de Fisiologia Humana pela “descoberta” do princípio da homeostase – importante para o conhecimento de fisiologia humana que temos atualmente –, que é a tendência do corpo em se manter em equilíbrio – mas um equilíbrio dinâmico. O corpo tenta manter-se em equilíbrio apesar das influências externas a que é submetido. Por exemplo, quando nos alimentamos, digerimos os alimentos, absorvemos os nutrientes, os usamos para produzir novas estruturas, para reparar outras, para produzir energia e, com efeito, sobram resíduos: tudo isso provocaria desequilíbrio, mas nosso corpo, constantemente, se ajusta para manter um funcionamento fisiológico dentro de limites aceitáveis para a vida. A doença, nesse pensamento, seria o oposto dessa condição – ou seja, a incapacidade de o corpo encontrar o equilíbrio ajustando-se; seria o afastamento desse estado fisiológico. Decorre disso que estado fisiológico (funcionamento normal e saudável) e estado patológico (da doença) são dois estados opostos; o primeiro estudado pela Fisiologia e o segundo, pela Patologia.
No entanto, Claude Bernard (o “pai da fisiologia moderna”) não pensava assim… Para ele não existiam dois estados, o fisiológico e o patológico; o estado dito patológico seria uma variação do estado dito fisiológico e a homeostase seria um processo ou funcionamento entre esses dois estados e não apenas o equilíbrio dentro dos níveis normais ou saudáveis: dessa forma, a noção de desordem e de disfunção estaria contemplada na noção de saúde. Ou seja, é lá entre ordem e desordem, entre função e disfunção que Claude Bernard concebe a homeostase!
Olhem um pouco do pensamento de Claude Bernard: “Não é, pois, necessário que um dos fatos seja considerado um distúrbio, especialmente porque não há distúrbios ou anormalidade na natureza; tudo acontece segundo leis absolutas, ou seja, sempre normais e determinadas” (Bernard, 1865, p. 19). E conclui mais para frente: “partindo do ponto de vista fisiológico, considera-se que a doença não existe no sentido de que seria apenas um caso particular do estado fisiológico” (Bernard, 1865, p. 128). Claro que tudo que ele diz é muito mais complexo do que essas duas frases e há aqui apenas um pequeno recorte, mas bastante revelador de suas ideias.
Pensemos: como seriam a concepção e o tratamento das doenças se elas fossem consideradas dentro de uma concepção normal e fisiológica e, portanto, fazendo parte da condição normal e saudável das pessoas, em vez de ser algo que precisamos eliminar ou acabar – mas que nunca conseguimos? Será que não teríamos menos remédios e mais práticas integrativas? Fato é: nossa concepção de saúde e doença seria completamente outra se as ideias de Claude Bernard tivessem se mantido dentro do pensamento fisiológico atual.
Não à toa, o século XX foi o século da medicalização, efeito desse processo de patologização. Quem ganha com isso? Mas isso é uma outra conversa.
Referência:
Bernard, Claude. Introduction à l’étude de la medicine expérimentale. Paris: J. B. Baillière et Fills, 1865.