Quem nunca sentiu um friozinho na barriga no primeiro encontro? Todos nós já vivenciamos algum sintoma gastrointestinal frente a um desafio ou nova experiência. Mas você sabe por que isso acontece?
Nosso cérebro é ligado ao intestino de várias formas. O eixo intestino-cérebro é constituído por rotas bidirecionais e tem uma comunicação mediada por várias vias como o sistema nervoso central através do sistema nervoso parassimpático (em especial, o nervo vago), o sistema neuroendócrino, o sistema imunológico e o sistema circulatório – que permite a passagem de metabólitos e neurotransmissores produzidos pelo intestino.
Quando passamos por estresse emocional ou vivenciamos a ansiedade, liberamos no cérebro um hormônio liberador de corticotrofina que tem efeito espasmódico no intestino e pode provocar diarreia. Além disso, atualmente sabe-se que o nosso intestino produz cerca de 500 milhões de neurotransmissores. E o que isso quer dizer? Que o que sentimos impacta nosso intestino e a saúde intestinal altera o funcionamento do cérebro, é uma via de mão dupla.
Outro fator importante para se levar em consideração na importância do intestino na nossa saúde mental é a relação das bactérias que habitam nosso sistema gastrointestinal. Após o projeto genoma e o desenvolvimento de técnicas de sequenciamento genético, tem-se maior conhecimento da população de microorganismos que habitam nosso intestino, chamada de microbiota e microbioma intestinal. Estima-se que há cerca de 100 trilhões de microorganismos (bactérias, vírus, fungos) em nosso intestino. Por isso alguns pesquisadores falam que somos apenas 43% humanos, pois o corpo humano tem cerca de 43 trilhões de células humanas, isto é, temos mais células de microorganismos do que células humanas!
Mas como essa população gigantesca de microorganismos, que habita nosso intestino, impacta nosso funcionamento cerebral e nosso comportamento?
Uma pesquisa publicada em 2020, no Human Microbiome Journal, realizada pela Ph.D. Katerina Johnson, do Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de Oxford, Reino Unido, examinou a conexão entre a composição das bactérias intestinais e traços de personalidade, como sociabilidade e neuroticismo (5). Nesse estudo, a pesquisadora coletou amostras fecais de 655 adultos, com idade média de 42 anos. A cientista utilizou a análise de sequenciamento genético para avaliar os gêneros bacterianos específicos. O estudo solicitou aos participantes que respondessem a um questionário de estudo abrangente sobre comportamento, saúde, estilo de vida e fatores sociodemográficos para análise das personalidades. Também foram realizados um conjunto de análises estatísticas que ajudaram a determinar a relação entre a composição das bactérias intestinais e características comportamentais, como sociabilidade e neuroticismo. Nessa pesquisa foi considerado o International Personality Item Pool – que consiste em análise de perfil de personalidades. Este modelo classifica as diferenças de personalidade em cinco grandes grupos:
Abertura, que os pesquisadores descreveram como “criatividade, curiosidade intelectual e vontade de buscar novas experiências”
II) Afabilidade, definida como “confiança e cooperação nas interações sociais”
III) Conscienciosidade, ou a “atenção aos detalhes e foco”
IV) Extroversão, ou a “propensão de buscar e desfrutar da companhia de outros”
V) Neuroticismo, ou seja, a “tendência de sentir emoções negativas”
Os resultados encontrados são muito interessantes! O estudo revelou que vários tipos de bactérias, que os pesquisadores relacionaram ao transtorno do espectro do autismo em estudos anteriores, também tiveram associações com diferenças de sociabilidade na população em geral. Parece que o microbioma intestinal pode contribuir não apenas para os traços comportamentais extremos vistos no autismo, mas também para a variação no comportamento social da população em geral. Além disso, o estudo descobriu que pessoas com redes sociais mais extensas eram mais propensas a ter uma composição mais diversa de bactérias intestinais. Isso sugere, escreve o autor, que ser socialmente ativo pode promover a diversidade do microbioma intestinal. Muitas pessoas acreditam que uma maior diversidade no microbioma intestinal humano promove a saúde intestinal e melhor saúde geral. A análise revelou também que a menor diversidade microbiana estava associada a níveis mais elevados de estresse e ansiedade.
Seria o microbioma uma das chaves para saúde mental?
Nas duas últimas décadas tem havido um crescente interesse no microbioma intestinal e a relação com o cérebro e comportamento, hoje conhecido como eixo microbioma-intestino-cérebro. Estudos recentes mostraram que a microbiota pode influenciar o funcionamento do eixo intestino cérebro e dessa forma alterar o funcionamento do cérebro afetando o comportamento (1,2,12). Vários transtornos de humor, como depressão e ansiedade e transtornos do espectro autista tem relação com perturbações gastrointestinais (3-9).
Atualmente já se sabe que doenças inflamatórias do intestino, envolvem frequentemente problemas psicológicos relacionados à alteração da microbiota intestinal. Pesquisas mostraram que a microbiota intestinal de pacientes com síndrome do intestino irritável transplantados em ratos mudou a função intestinal e comportamento dos animais (8). Sabe-se também que pessoas com transtornos de humor, como depressão, apresentam microbiota intestinal diferente de pessoas saudáveis (4,5,12).
Então será que a ingestão de microorganimos poderia melhorar quadros de depressão e ansiedade?
Um estudo, realizado no Irã, em 2019, com 110 pacientes adultos com depressão que receberam probióticos (Lactobacillus helveticus e Bifidobacterium longum) e prebióticos (galactooligossacarídeos) ou placebo por 8 semanas, mostrou que a suplementação com probióticos resultou em diminuição significativa nos índices de depressão e aumento significativo de triptofano, se comparado aos grupos controle e de prebióticos (6).
Uma pesquisa realizada em 2018, acompanhou os sintomas psiquiátricos de 17 pacientes com complicações intestinais (como a síndrome do intestino irritável – SII) que receberam transplante fecal de pacientes saudáveis; após o transplante, verificou-se alívio de sintomas depressivos e de ansiedade e melhora da qualidade do sono em pacientes com doença gastrointestinal funcional (FGID) (8).
Estima-se que há mais de 1000 espécies de bactérias no intestino de um adulto, entretanto essa quantidade e diversidade de espécies podem variar devido a fatores como genética, idade, estresse, uso de fármacos e nutrição (4). Os hábitos de higiene, a interação com o ambiente e até as pessoas que convivemos afetam as espécies de microorganismos que temos? Quem já ouviu a frase que somos a média das 5 pessoas que mais convivemos? Pois é, isso pode fazer sentido também pelas bactérias que compartilhamos.
Pesquisas têm mostrado que a dieta também influencia a microbiota intestinal na função cognitiva (10). Novas abordagens terapêuticas para tratamento da depressão e ansiedade precisam ser exploradas e pensadas pelos profissionais de saúde, os resultados do tratamento (geralmente, realizado via fármacos) permanecem abaixo da expectativa: um em cada dois pacientes que sofre de depressão não responde bem ao tratamento e 40% daqueles que respondem têm recaídas e muitos pioram apesar do tratamento(7).
Sabemos hoje que essa população de microorganimos desempenham muitos papéis importantes em nossa saúde, inclusive saúde mental e comportamento. Precisamos entender que o que sentimos impacta nosso intestino e nosso intestino é capaz de alterar nosso cérebro.
Sempre pensamos que nossas emoções e a forma como vivemos e interagimos com outras pessoas estavam associadas apenas como uma construção psíquica, religiosa, social e ambiental, sim com certeza esses fatores influenciam! Entretanto, hoje a ciência tem nos elucidado que a população de microorganismos que habita em nós também desempenha um impacto em todas as nossas relações e interações com outras pessoas.
Assim, hoje ao sentir o friozinho na barriga por alguém precisamos pensar que esse nervoso precisará valer muito a pena, não só pela vida que será compartilhada, mas por mais engraçado que soe, pela troca de bactérias que teremos. Concorda?
Referências:
1)Biedermann L, Rogler G. The intestinal microbiota: its role in health and disease. Eur J Pediatr. (2015);174(2):151-67
2)Clapp, Megan et al. “Gut microbiota’s effect on mental health: The gut-brain axis.” Clinics and practice vol. 7,4 987. 15 Sep. (2017),.
3) G.B. Rogers, et al. From gut dysbiosis to altered brain function and mental illness: mechanisms and pathways Mol Psychiatry, 21 (2016), pp. 738-748
4) Jiang H, Ling Z, Zhang Y, Mao H, Ma Z, Yin Y, et al. Altered fecal microbiota composition in patients with major depressive disorder. Brain Behav Immun. (2015) ;48:186-94.
5) Johnson, K.V Gut microbiome composition and diversity are related to human personality traits, Human Microbiome Journal, Volume 15, (2020),ISSN 2452-2317,
6)Kazemi A, Noorbala AA, Azam K, Eskandari MH, Djafarian K. Effect of probiotic and prebiotic vs placebo on psychological outcomes in patients with major depressive disorder: A randomized clinical trial. Clin Nutr. 2019 Apr;38(2):522-528. doi: 10.1016/j.clnu.2018.04.010. Epub 2018 Apr 24. PMID: 29731182.
7) Koopman M, El Aidy S; MIDtrauma consortium. Depressed gut? The microbiota-dietinflammation trialogue in depression. Curr Opin Psychiatry.(2017); 30(5):369-77.
8) Kurokawa et al, The effect of fecal microbiota transplantation on psychiatric symptoms among patients with irritable bowel syndrome, functional diarrhea and functional constipation: An open-label observational study, Journal of Affective Disorders, Volume 235, (2018), Pages 506-512, ISSN 0165-0327.
9) Slyepchenko A, Maes M, Jacka FN, Köhler CA, Barichello T, McIntyre RS, et al. Gut microbiota, bacterial translocation, and interactions with diet: pathophysiological links between major depressive disorder and non-communicable medical comorbidities. Psychother Psychosom. (2017) ;86(1):31-46
10) Moloney RD, Desbonnet L, Clarke G, Dinan TG, Cryan JF. The microbiome: Stress, health and disease. Mamm Genome. (2014) ;25(1-2):49-74.
11) M. Pirbaglou, et al. Probiotic supplementation can positively affect anxiety and depressive symptoms: a systematic review of randomized controlled trials
Nutr Res, 36 (2016), pp. 889-898
12)Souzedo, F. Bellesia, Bizarro, L e Pereira, A. P. O eixo intestino-cérebro e sintomas depressivos: uma revisão sistemática dos ensaios clínicos randomizados com probióticos. Jornal Brasileiro de Psiquiatria [online]. (2020), v. 69, n. 4 [Acessado 7 Dezembro 2021] , pp. 269-276. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0047-2085000000285.