Falar sobre Hipertensão e Medicina Chinesa (MC) é um desafio, e ao pensar em fazer esse texto muitas coisas vieram à minha cabeça.
Acho que por sempre ser meio nerd e gostar muito de estudar, pude durante a minha formação, tanto na MC como durante meus anos de aperfeiçoamento na carreira acadêmica, ter o privilégio de manter contato com professoras e mestras de muita competência. Competência tanto no ensino profissional como no ensino de vida.
Alguns ensinamentos e aprendizados ficaram para sempre.
Ainda está presente e ecoando em minhas lembranças (do período no meu aprendizado em acupuntura e medicina chinesa), o que uma grande mestra na minha formação dizia: abandone o raciocínio fisiológico envolvido na explicação das alterações que levam às doenças diagnosticadas pela medicina ocidental, assim você poderá entender a visão da medicina chinesa em como os desequilíbrios levam aos sinais e sintomas. Por outro lado, outra grande mulher que influenciou a minha formação na vida acadêmica dentro de um laboratório de pesquisa sempre me falou que o conhecimento adquirido nunca morre e nunca é retirado de nós.
A recordação dessas duas falas, que apesar de parecer contrárias, acabaram por me desafiar a escrever esse texto.
A minha intenção com esse texto, então, é chamar a atenção para uma doença com graves consequências para a qualidade de vida, que está aumentando na população mundial, e apresentar um pouco da visão diferente que a MC sobre o que chamamos de hipertensão.
“Quanto está a minha pressão?”
Apesar de ser comum nos dias de hoje a aferição da nossa pressão arterial em consultas de rotina, isso só foi possível após os avanços tecnológicos do século XVI. Foi então que, só a partir da pressão arterial se tornar algo mensurável, foi estudada e entendida na medicina ocidental. Porém a importância do pulsar do sangue dentro das artérias que pode ser sentido pelo tato, apresenta sua importância muito antes disso.
Um dos registros mais antigos sobre pressão arterial dentro da cultura ocidental está na frase do filósofo romano Lucius Seneca (4 a.C – 65 d.C) “O médico não pode prescrever por carta, nós precisamos sentir o pulso”. Apesar de no nosso cotidiano encontramos uma postura mais distante em muitos médicos, a importância de sentir o pulso, do toque no paciente está registrado e destacado dentro da cultura Greco Romana que influenciou muito o início do que hoje chamamos medicina ocidental.
Se olharmos para a história das culturas mais antigas, existem registros datados de 2600 a.C., que relatam tratamentos com acupuntura, venossecçãoa e uso de sangrias utilizando sanguessugas para tratar o que chamavam “doença do pulso forte”1. Há registros também da descrição desses procedimentos na Biblioteca Assurbanipal, também chamada de Biblioteca de Nineveh (669-626 a.C.)2. As mesmas indicações foram encontradas em textos como do Imperador Amarelo (2600 a.C.) e do Romano Cornelius Celsus3. Erasístrato de Chio (310-250 a.C.), Galeno (131-201 a.C.)4 e até mesmo Hipócrates3 recomendavam a venossecção para esses casos.
O que esses registros demonstram é que, a entidade clínica entendida hoje em dia como hipertensão, já se manifestava desde a antiguidade e já possuía até mesmo indicações para o seu tratamento.
Conceitos
Primeiro é preciso deixar claro que a hipertensão que vamos falar aqui é a chamada “Hipertensão Essencial” pela medicina ocidental, onde a sua causa não consegue ser claramente determinada. Está classificada dentro das doenças não transmissíveis5, portanto nós não adquirimos de outra pessoa a hipertensão, nós a desenvolvemos ou não, no decorrer da nossa vida.
São tantos estudos e pesquisas sobre a hipertensão arterial, mostrando a importância do diagnóstico e tratamento dessa doença conhecida popularmente como um “mal silencioso” que mundialmente o dia 17 de maio é um dia dedicado à conscientização da população para sua prevenção e correto tratamento.
O diagnóstico de hipertensão muitas vezes é feito não porque as pessoas conseguem sentir a pressão nos vasos estar em níveis mais altos, mas porque as pessoas procuram uma solução para o que estão sentindo como dores de cabeça, palpitações, tonturas, sangramento nasal, perda da visão. Na maioria das vezes, quando esses sintomas estão presentes eles mostram que a hipertensão já está instalada, (isto é, os níveis de pressão arterial estão sendo mantidos acima de 140 mmHg de pressão sistólica e 90mmHg de pressão diastólica) e possivelmente já começou a alterar as funções e, em alguns casos, as estruturas de alguns órgãos internos.
Como não havia recurso tecnológico para aferição da pressão arterial na China antiga, os médicos mais modernos da medicina oriental consideram o mais próximo ao que denominamos de hipertensão, os sintomas como cefaleia, tontura, palpitações, insônia e sangramento nasal. Mesmo assim, muitos médicos chineses colocam que as entidades mais próximas da hipertensão seriam a cefaleia e a tontura7.
Se eu parasse o texto por aqui, você teria a impressão que essas duas formas de olhar para a hipertensão estão em total acordo … mas não, não estão!!
Na MC existe um passo anterior ao aparecimento das alterações funcionais e estruturais dos órgãos internos.
Os sintomas podem revelar um desequilíbrio em funções dos órgãos internos, funções essas que podem estar somente ligadas a alterações de função energéticas e não (ainda) funcionais ou mesmo estruturais.
Para a medicina ocidental os sintomas são o final em si. Há o tratamento da hipertensão pelo uso de remédio anti-hipertensivos, que vão combater o aumento da pressão arterial e assim os seus sintomas, mas não a sua causa. Lembre-se que estamos falando da hipertensão essencial, de causa desconhecida.
Você nunca ouviu dizer que alguém “já sabia” que havia algo errado com ela e o diagnóstico demorou a ser dado? Os desequilíbrios energéticos não aparecem em exames da medicina ocidental. Não posso deixar de colocar aqui que a MC tem um caráter preventivo muito presente. Não que ela não realize a cura, mas o pensamento inicial envolvido em toda a lógica dessa medicina é preventivo. Os grandes mestres e doutores da antiguidade eram mantidos perto dos imperadores para que eles não adoecessem. Quando isso acontecia, o imperador adoecer, o mestre que cuidava dela era substituído.
A entidade clínica hipertensão não existe para a MC, mas faz parte do repertório dos seus tratamentos o alívio das dores de cabeça, das tonturas, dos sangramentos nasais, das palpitações, que são resultado de diversos desequilíbrios das funções dos órgãos e vísceras internos.
Os recursos terapêuticos existentes nessa medicina podem sim evitar que as alterações e desequilíbrios energéticos que, quando deixados de lado ou não tratados, podem levar a alterações das funções orgânicas e estruturais dos nossos órgãos internos mudando e prejudicando a nossa qualidade de vida, o que na medicina ocidental muitas vezes resulta no diagnóstico de hipertensão.
Como ficamos hipertensos?
Desde as primeiras aferições da pressão arterial até os dias de hoje, muito foi estudado e esclarecido sobre os fatores envolvidos no desenvolvimento e na evolução do quadro de hipertensão.
Estudos científicos apresentados pela comunidade médica e científica na medicina ocidental comprovam que fatores como o excesso de peso, o fumo, o consumo de álcool, a alimentação inadequada, a inatividade física e a história familiar são alguns dos fatores importantes na determinação do aparecimento da hipertensão8. Somente cerca de um terço dos fatores envolvidos na fisiopatologia da hipertensão podem ser atribuídos a fatores genéticos9.
A maior importância no seu diagnóstico e tratamento é por sua frequente associação com alterações funcionais e/ou estruturais de importantes órgãos como coração, cérebro, rins e vasos sanguíneos10.
Vamos cruzar as informações?
Como já citado anteriormente a hipertensão tem causa multifatorial, mas os principais fatores desencadeadores da hipertensão são a má alimentação, ganho de peso, inatividade física, estresse, tabagismo e história familiar. Eliminando a história familiar, todos os outros são fatores de risco modificáveis, ou seja, é possível alterar a qualidade da sua saúde futura. Se estamos falando de mudar para que no futuro não tenhamos problemas, estamos falando em prevenção, e como já disse, a prevenção está totalmente alinhada ao modo de entender doença pela medicina chinesa.
Não é novidade que para a MC a base para a manutenção e obtenção da saúde é uma alimentação correta, atividade física constante, e a prática de atividades meditativas e contemplativas para uma boa qualidade de vida.
De forma muito interessante, nessa mesma visão, a etiologia da hipertensão está ligada a principalmente 4 fatores.
Os 4 fatores são:
1- Emoções.
A tensão emocional geradora de ressentimento, raiva contida ou mesmo preocupação podem levar a desequilíbrios do Fígado que frequentemente estão envolvidos na causa da hipertensão11.
A manutenção da raiva e do ressentimento podem alterar a função do Fígado, fazendo com que o sangue que circula pelos nossos vasos circule com mais pressão, por aumento da energia Yang do Fígado, refletindo em um pulso mais forte, tendo aqui um paralelo pelo entendido no ocidente como maior pressão arterial. Essa alteração de função do Fígado pode levar a sintomas como dores de cabeça, tontura e até mesmo sangramento nasal, sintomas esses que podem ser os primeiros sinais que fazem as pessoas procurarem um médico e que dão início ao diagnóstico de hipertensão.
Além disso, na Medicina Chinesa o Fígado tem uma relação muito direta com a circulação de sangue e energia pelo corpo; o sangue à noite retorna ao fígado para ser purificado, fortalecido para depois poder circular de forma livre por todo o nosso corpo. Sim, o mesmo fígado que está envolvido no metabolismo de várias substâncias na visão da medicina ocidental…..mais alguma semelhança???
A acupuntura, a dietoterapia, o Qi Gong podem ajudar a equilibrar essas emoções evitando os sintomas e as possíveis alterações em nosso corpo.
2- Baixa qualidade de vida.
Horários desregrados de trabalho, poucas horas de descanso e lazer. Essa rotina desgastante esgota o Yin do Fígado e dos Rins11. Os sintomas relacionados a essas alterações são a ansiedade, as enxaquecas, as tonturas e o cansaço extremo. Além disso, se o Yin está menor o Yang vai estar mais atuante resultando em um pulsar do sangue mais forte, e a dor de cabeça pode ser sentida de forma pulsante. Sentir-se assim está relacionado a alguns dos motivos da procura por um diagnóstico “o que está errado comigo?” podendo ser o início do diagnóstico da hipertensão. Reconhece esse padrão de trabalho e qualidade de vida nos dias de hoje?
Recursos terapêuticos como a acupuntura, a dietoterapia e o respeito a horários de trabalho, descanso e lazer já eram indicados há milênios para a melhora dos desequilíbrios que levam a sintomas como enxaquecas, tonturas, cansaço extremo e ansiedade. E falando em sintomas … estes sintomas não lembram o que chamamos de “hipertensão”???
3- Dieta Irregular
Trabalhos científicos demonstram que a má qualidade da alimentação que leva à obesidade é um dos maiores fatores de risco para as doenças cardiovasculares, dentre elas a hipertensão12.
Uma dieta irregular e de má qualidade, com excessivo consumo de lacticínios, alimentos gordurosos e frituras, possibilita uma deficiência na função do Baço o que tem papel muito importante na gênese da hipertensão11. O Baço juntamente com o Estômago são os responsáveis pelo processo de digestão dos alimentos ingeridos, quando em desequilíbrio podem favorecer o aparecimento do que em MC é chamado de Fleuma. De uma forma bem simplista, a Fleuma pode ser entendida como um estado de acúmulo e estagnação de energia e sangue que podem levar a alterações estruturais e funcionais orgânicas nos órgãos. A presença da Fleuma está ligada a processos de obesidade, arteriosclerose e diabetes.
Portanto, o tratamento para os desequilíbrios do Baço e os sintomas como tonturas, e dores de cabeça, que levam os indivíduos a suspeitarem que “algo está errado comigo” e procurar um diagnóstico pela medicina ocidental, já estava descrito nos antigos tratados de MC.
4- Envelhecimento
Dentro do entendimento da MC, e vamos concordar da medicina ocidental também, essa é a única causa relacionada ao aparecimento da hipertensão que não é passível de mudança. O envelhecimento é inevitável.
Mas envelhecer bem, mantendo controle sobre sua qualidade de vida e hábitos diários de alimentação e exercício podem deixar a hipertensão e seus sintomas afastados até o final de nossa jornada.
Ter sintomas como dores de cabeça, tonturas, perda de visão, sangramento nasal podem ser sinais de que algo não vai bem. Fazer seus exames e manter um check up anual pode afastar doenças mais graves e debilitantes em nossa vida.
Tratar e cuidar de forma preventiva a sua saúde pode ser feita sob o olhar e cuidado da Medicina Chinesa. Pense sobre essa possibilidade.
A vida é boa!
Viver bem pode ser uma escolha!
Referencias:
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a: é o termo genérico para um procedimento que envolve o corte de uma veia de qualquer forma, mas geralmente se refere à extração de sangue de uma veia.